STF põe fim ao mais longo conflito de terra para reforma agrária

conquista da terra

SAPÉ (PB) — Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) do início de fevereiro colocou fim ao mais longo conflito de terra para a reforma agrária no país, que durava 60 anos, e envolvia a Fazenda Antas, de 503 hectares, em Sapé, no interior da Paraíba. A disputa gerou conflitos, ameaças, ações de jagunços, despejos e assassinatos de líderes camponeses, como João Pedro Teixeira, assassinado numa emboscada em abril de 1962, naquela região. Sua história virou o documentário “Cabra marcado para morrer”, de Eduardo Coutinho. Na comunidade Barra de Antas, próxima à propriedade rural, as poucas famílias de camponeses que restaram na área comemoram a decisão e contaram ao GLOBO como planejam a vida no futuro assentamento Elizabeth Teixeira, uma homenagem à viúva do líder camponês, que foi presa pela ditadura militar e viveu na clandestinidade durante 17 anos. Protagonista do documentário de Coutinho, ela vive hoje em João Pessoa (PB) e tem 89 anos.

Até meados dos anos 90, 85 famílias de sem-terra viviam no local e, aos poucos, com a violência e a desesperança de ver a terra desapropriada para a reforma agrária, boa parte saiu dali. O imóvel rural foi reivindicado por 57 famílias e hoje apenas 11 delas continuam em Barra de Antas. Essas famílias chegaram a ocupar a fazenda, mas foram alvos de jagunços na década de 90, e sofreram ação de despejo. Elas contam que fugiram e deixaram a terra à bala. Os relatos são de perseguição e risco de morte.

– Foi muita carreira de capanga. Tive que fugir dentro da mata no meio de urtiga. Sabe o que é urtiga? É o mesmo que levar uma surra. Pisei num buraco de formigueiro, caí. Tinha um capanga com cavalo e armado em cima de mim. Não sei como estou aqui para contar história. Agora, serão outros tempos – disse José Bias Estevão, de 56 anos e 6 filhos.

– Foi muita bala. Tudo por um pedaço de chão. Vi meu nome numa lista para morrer. Mas sobrevivi a isso. Levei muita carreira – contou o sem-terra José Soares dos Santos, de 53 anos, que vive numa casa de taipa e sobrevive com R$ 70 do Bolsa Família.

Único contemporâneo de João Pedro Teixeira que vive hoje na comunidade, Sebastião Francisco, de 65 anos e 22 filhos, também se recorda da perseguição. Adolescente na época, ele lembra da presença do Exército na área e já, naquela época, da dificuldade em obter algum pedaço de terra para plantar:

– Era muita pressão e um chuveiro de bala aqui de fazer medo. Não tinha sossego. Foi muito sofrimento desde aqueles anos. Essa decisão (do STF) foi a notícia mais importante da minha vida. Hoje tem essa Bolsa Família mas bom é viver do suor da gente, na terra onde a gente nasceu.

A sem-terra Josefa Dias faz um relato na mesma linha, de perseguição. Ela conta que perdeu um companheiro nesse enfrentamento e que sofre sequelas da violência. Disse ter problemas de saúde ligados ao sistema nervoso.

-A perseguição foi muito grande. A gente sofreu muito, acampou na fazenda e sofria tocaia o tempo inteira. Fomos expulsos com capanga atirando e a gente correndo com nossos pertences, crianças, mulheres grávidas e os cavalos pisoteando todo mundo. A gente se escondia até no cemitério. Não tinham dó de ninguém, atiravam em todo mundo. As professoras foram embora com medo e as aulas eram suspensas – contou Josefa, na frente da pequena casa de alvenaria em que vive com sua família.

A fazenda Antas, alvo da disputa, foi desapropriada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006. O proprietário da terra, Sebastião Figueiredo Coutinho, conhecido por Bastos Ramos, conseguiu, em 2007, liminar da então presidente do STF, ministra Ellen Gracie, suspendendo os efeitos do decreto de Lula. O Incra recorreu e somente agora foi julgado o recurso. Com a decisão deste mês, o Incra, finalmente, poderá fazer a vistoria e a avaliação da terra e de suas benfeitorias. O fazendeiro ainda poderá contestar o valor. O Incra estima em R$ 2 mil o hectare, que totaliza pouco mais de R$ 1 milhão. Já o proprietário fala em R$ 50 mil o hectare. Por suas contas, o governo terá que desembolsar para ele R$ 25,1 milhões. Uma diferença de R$ 24 milhões.

O superintendente do Incra na Paraíba, Cleofas Caju, comemorou a decisão do STF e disse que, nessas seis décadas, o conflito gerou tristeza e dor para as famílias envolvidas.

– O governo, com essa decisão, faz justiça e reconhece uma luta histórica. Vai sair daí um belo projeto de assentamento, fruto de uma luta que remonta os tempos das Ligas Camponesas, onde se começou a batalha pela implantação da reforma agrária no país – disse Cleofas Caju.

Na comunidade de Barra de Antas está localizada a casa onde o casal João Pedro Teixeira e a mulher Elizabeth moraram com os onze filhos. Hoje, funciona o Memorial das Ligas Camponesas, com pertences do ex-líder camponês. João Pedro fundou as ligas na região e o seu sindicato chegou a ter dez mil filiados. Ele morreu assassinado 2 de abril de 1962 e nunca os mandantes foram presos.

Para dono de fazenda, ocupação por sem-terra foi irregular

SAPÉ (PB) — Dono da Fazenda das Antas, em Sapé, Sebastião Figueiredo Coutinho, de 73 anos, tem uma aversão aos sem-terra e associa a atuação do grupo a práticas ligadas ao governo de Cuba:

– É um movimento terrorista.

Conhecido por Bastos Ramos, o fazendeiro afirma que ainda luta para “salvar” sua terra. Com uma pasta de documentos e mapas de sua propriedade, ele garante que o local é produtivo e acusa a existência de um conluio entre o Incra e os sem-terra da comunidade de Barra de Antas. Coutinho culpou sua derrota no STF a seu próprio advogado de defesa, que não teve um bom desempenho.

– Eu vi com muita tristeza a decisão. Tem muitas informações falsas ali. Minha propriedade cumpre sim sua função social. Funcionários do Incra atuam junto com os sem-terra. Não bastasse, miseravelmente, não fiz uma defesa à altura (no STF) e, por isso, tive uma votação desfavorável – disse Coutinho.

Ele afirma que o tamanho da sua terra é de 419 hectares e não de 503, como informa o Incra.

Sobre os conflitos, a versão do fazendeiro é de que os sem-terra ocuparam sua fazenda ilegalmente, nos anos 90, e que seus jagunços agiam na defesa da propriedade. Os conflitos e ataques entre seus empregados e os sem-terra nunca partiam de seus funcionários, afirma ele.

– Eles que invadiram minha lavoura, destruíam tudo e matavam os animais.

Nas suas terras foram encontradas armas e munições recentemente. Ele responde a uma ação na Justiça por essa acusação, mas diz que o armamento foi deixado lá pelos sem-terra para incriminá-lo.

Coutinho é um fazendeiro médio, já foi mais poderoso na região. Ele está em Sapé há mais de 50 anos e diz ter poucas lembranças de João Pedro Teixeira:

– Graças a Deus nunca vi esse homem.

Também tem restrições à ação de Elizabeth Teixeira.

– Não acredito que essa mulher foi perseguida pelo Exército. Ela foi usada .

Coutinho se vê como principal vítima da história.

– Esse negócio de direitos humanos só serve para proteger bandidos – reclama.

Coutinho diz que irá respeitar a decisão do STF, desde que paguem a ele o que entende ser seu direito e o real valor da terra.

‘Resgatada’ por Coutinho após a ditadura

JOÃO PESSOA e SAPÉ (PB) — Protagonista do documentário “Cabra marcado para morrer”, Elizabeth Teixeira, de 89 anos, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, vive desde os anos 80 no bairro Cruz das Armas, em João Pessoa, numa casa comprada pelo cineasta Eduardo Coutinho. O imóvel foi adquirido com recursos de um dos prêmios obtidos pelo seu filme. Após a morte do marido em 1962, Elizabeth, que virou uma liderança no campo, foi presa e perseguida pela ditadura. Ela ficou oito meses na prisão e depois fugiu para San Rafael (RN). Na clandestinidade, trocou sua identidade e viveu durante 17 anos com o nome de Marta Maria da Costa.

Elizabeth diz ter sido “resgatada” por Coutinho, em 1981, história retratada com detalhes no filme. Na semana passada, em entrevista ao GLOBO, ela falou pela primeira vez da morte do cineasta.

– Tenho muita lembrança do Eduardo Coutinho. Quando terminou a ditadura, ele me resgatou em San Rafael, e, quando cheguei aqui a João Pessoa, não tinha casa para morar. Ele comprou essa casa e me deu. Apoiou nossa luta. Ele foi assassinado. Ave Maria. Meu Deus! Minha filha assistindo à televisão me chamou: “Mãe, olha aí o que está acontecendo com o Eduardo”. Senti muito a morte dele. Hoje moro na casinha que comprou com o filme – disse Elizabeth Teixeira, na sua casa na capital paraibana.

A oposição de seu pai, o fazendeiro Manoel Justino, a seu casamento com João Pedro Teixeira é um episódio que não sai de sua memória até hoje. Ela contou que o pai referia a seu marido como um homem pobre e moreno, “assim se chamava o negro”:

– Meu pai dizia que casar com um homem assim, de jeito nenhum. Fugi de casa. Não me arrependi de ter casado.

Ela disse que, até se casar, não conhecia o “espírito de luta” de João Pedro.

– Não sabia, meu filho, que João Pedro tinha aquele espírito de lutar pela terra. Não sabia, não. Era um analfabeto e se alfabetizou comigo.

Ela falou sobre sua perseguição e prisão:

– Foram oito meses de prisão. Depois, o Exército me liberou. Mas nunca me trataram mal. Me tratavam bem. O major buscava saber se me alimentavam bem. Quando me soltaram, disseram que não era para voltar para casa. Senti que, se os policiais voltassem a me pegar, não iam me deixar com vida. Por isso fugi e mudei meu nome. Assim vivi durante toda a ditadura.

Em San Rafael, ela lecionou e trabalhou como lavadeira e cozinheira. Levou apenas um dos filhos, Carlos, com ela.

A história da família é marcada por tragédias. Dos 11 filhos, a filha mais velha, Marluce, após a morte do pai e a perseguição à mãe, matou-se. A casa onde a família morou, na comunidade de Barra de Antas, virou o Memorial das Ligas Camponesas. Ali estão alguns pertences de João Pedro, como carteira de sindicalizado e o microfone que usava em seus discursos para os camponeses. Há dois anos, o terreno da casa foi desapropriado pelo governo do estado e entregue ao memorial, que funciona ali desde 2006.

Elizabeth está contente com o fato de que seu nome vai batizar o assentamento a ser criado após a vitória no STF:

– Estou muito feliz e honrada com a decisão de batizar o assentamento com meu nome. João Pedro ia gostar disso.

A professora de História Juliana Teixeira, de 34 anos, neta de Elizabeth, leciona nas escolas de Sapé, região onde seus avós moraram e onde foram criadas as Ligas Camponesas na região. Ela trabalha na recuperação e divulgação da memória do trabalho de seus avós. Juliana contou que até hoje enfrenta resistência e que os contemporâneos de João Pedro Teixeira têm receio de falar:

– No início foi difícil. Ainda hoje algumas pessoas têm receio em falar, têm medo. Eu mesma percebo olhares diferentes, pessoas me abordam dizendo que a história “não foi bem assim” – contou Juliana.

A professora foi lecionar uma época numa escola que fica numa propriedade rural da família de Aguinaldo Veloso Borges – apontado como um dos mandantes da morte de João Pedro, e que já faleceu:

– Eu me senti um pouco travada para falar desse assunto lá.

Juliana Teixeira, ano passado, deu longo depoimento para Eduardo Coutinho, que voltou à região para refazer “Cabra marcado para morrer”.

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